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quinta-feira, 26 de abril de 2012

OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - Hospital de Santa Maria de Rocamador ou de Frei João (?)

Este hospital, foi provavelmente fundado no ano de 1200 (?), no tempo de D. Sancho I, por Pedro Esteves e sua mulher Clara Geraldes, tendo uma longevidade de cerca de 300 anos.
Sabemos que no lado sul do adro da antiga Igreja de S. Julião, se situava a ermida de Nossa Senhora da Oliveira ou de Santa Maria da Oliveira, junto à qual se encontrava o hospital – (...) casas onde chamam a oliveira, a par do hospital de frei João[1]. Em 1300, ao tempo de D. Diniz, foi fundada a confraria da invocação de Santa Maria de Roca Amador, passando o governo do hospital para as mãos dos confrades. Em 1373 encontramos referência à instituição: umas casas situadas na “rua das cornas (rua das Esteiras) partem com uma parte do aguião (norte) com hospital de Santa Maria de Rocamador, e ao poente com rego (rua dos Ourives do Ouro) e com casas de F. contra o avrego (sul); e ao levante com rua publica (rua das Esteiras)”. O hospital é ainda referido em 1400 “No adro de São Gião da dita cidade, casas que partem com rua publica que chamam a rua das esteiras, e d’outra parte com casas que foram de F. e d’outra parte com albergaria de Rocamador e da outra parte com rego”.[2] Em 1450 o provedor do hospital requer a D. Afonso V que conceda ao estabelecimento o direito de herdar todos os bens móveis do pobres que aí falecessem[3].
O hospital é ainda referenciado em 1499 “dentro do hospital de Santa Maria de Rocamador, edificado na Rua das esteiras, freguesia de São Gião”, sabendo-se que foi por fim incorporado no Hospital de Todos-os-Santos.[4] O edifício foi vendido e demolido antes de 1502, para no seu lugar ser construído outro prédio.[5] Em 1504  é referenciado como instituição já não existente: “o hospital que foi de Santa Maria de Rocamador, em a dita cidade, na Rua Nova del Rei, freguesia de São Gião (...) à entrada da Rua Nova del Rei”.
Esta área sofreu várias transformações nos anos seguintes: o esteiro do Tejo, designado no século XIV por Rego Merdeiro, que na época escoava as águas provenientes de Arroios, ocupava a actual baixa de Lisboa e estendia-se até ao Rossio, aproximadamente no percurso que hoje segue a Rua do Ouro; foi desaparecendo por assoreamento natural e pela mão da construção humana. Em meados do século XV foi o rego tapado, construindo-se sobre ele a Rua Nova do Cano, mais tarde Rua Nova de El-Rei (finais do séc. XV), Rua Nova dos Ourives do Ouro e finalmente Rua dos Ourives do Ouro. A Rua Nova tomou a designação de Rua Nova dos Mercadores (séc. XV), cuja parte oriental passou a designar-se Rua Nova dos Ferros no séc. XVI. Junto ao hospital situou-se uma fonte, fonte ou chafariz de Santa Maria da Oliveira, ou ainda chafariz da Rua Nova, designada nos fins do século XVI por chafariz dos Cavalos, por ter figuras de cavalos em bronze; a igreja de São Julião, a ermida de Nossa Senhora da Oliveira e o chafariz ficaram destruídos no terramoto de 1755, tendo sido a primeira construída noutro local (onde hoje se encontra, virada para o Largo de São Julião) e a segunda reedificada aproximadamente na mesma localização, no lado norte da Rua de São Julião, entre as actuais ruas do Ouro e Augusta.


[1] A. Vieira da Silva, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, vol. I, Câmara Municipal de Lisboa, 1940, p. 102, citando a Chancelaria de D. Diniz, liv. III, fl. 6, era 1337 (1299)
[2] A. Vieira da Silva, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, vol. II, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 38
[3] Rita Luis Sampaio da Nóvoa, A Casa de São Lázaro de Lisboa – Contributos para uma história das atitudes face à Doença (sécs. XIV – XV), dissertação de mestrado em história medieval, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 2010, p. 90
[4] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 11
[5] A. Vieira da Silva, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, vol. II, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 39

domingo, 22 de abril de 2012

OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - Hospital de S. Vicente

Durante o cerco de Lisboa, estabeleceram D. Afonso Henriques e os cruzados seus aliados os respectivos arraiais ao redor dos muros da cidade; no local onde se instalou o arraial dos coloneses e flamencos foi erguida, ainda durante o cerco, uma ermida e organizado um cemitério destinado às vítimas da conquista de Lisboa. Depois da tomada da cidade, decidiu o rei mandar construir um mosteiro neste local, entregando-o à guarda de um abade estrangeiro denominado Gualter ou Gualtero e mais tarde aos cónegos regrantes de Santa Cruz, de Coimbra. Denominou-se Mosteiro de São Vicente de Fora, por se encontrar construído no exterior da Cerca Moura.
Na década de 1170, D. Paio Gonçalves, Prior-Mor do mosteiro entre 1172 e 1205 ou 1208, iniciou a construção de um hospital; cabia ao Prior-Mor do convento a supervisão de todas as actividades do hospital, ajudado pelos “oficiais”, que cuidavam do fornecimento do hospital e da alimentação dos doentes. O Camareiro ou Vestiário era auxiliado pelo Hospitalário, um irmão converso que cuidava directamente do acolhimento prestado aos enfermos, pobres e idosos. [1]
D. Afonso Henriques deixa em testamento datado de 1179, uma quantia para as obras do hospital, que não estariam ainda terminadas. Existe ainda uma carta de D. Paio dirigida ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra indagando acerca do modelo de gestão e da sustentabilidade económica do hospital coimbrão, provavelmente para que servisse de modelo em S. Vicente de Fora.
O hospital era constituído por dois espaços distintos, sendo um deles uma albergaria para pobres e o outro um verdadeiro hospital assistencial para doentes; existiria ainda uma capela e um espaço destinado ao acolhimento de peregrinos. Supõe-se que a sua localização fosse a sul do convento, presumivelmente ladeando o claustro. Na primeira metade do séc. XIII, o hospital possuía um corpo clínico de médicos e uma biblioteca especializada, sabendo-se que recebeu em 1207 uma remessa de livros de medicina, provenientes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Sabemos que a instituição se manteve em actividade até ao reinado de D. João II. [2]


[1] Carlos Guardado da Silva, O Mosteiro de S. Vicente de Fora – a comunidade regrante e o património rural (séculos XII-XIII), Edições Colibri, 2002, p. 62-72
[2] Paulo Almeida Fernandes, Hoc Templum Aedificavit Rex Portugalliae Alphonsus I: O Mosteiro Medieval, Mosteiro de São Vicente de Fora – Arte e História, http://academia.edu/AddAffiliation, p. 97- 99



OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - Albergaria de Payo Delgado e Mercearia de João das Regras

Entre os companheiros de armas de D. Afonso Henrique na tomada de Lisboa, destacou-se Payo Delgado, que fundou cerca de 1154 uma Albergaria. Localizava-se junto à Igreja de S. Bartolomeu, no local do actual Poço do Borratém e foi considerada uma das mais importantes da cidade. Pertencia-lhe ainda a Ermida de S. Mateus e um dos bairros coutados de Lisboa, provendo a albergaria de valiosos rendimentos.
Nos últimos anos do séc. XIV ou primeiros do séc. XV foi a Albergaria substituída por uma mercearia para 20 merceeiras, instituída por João Afonso de Aregas, ou por corrupção do nome, João das Regras (? – 1404).[1]



Sabemos ainda da existência de um hospital denominado Hospital de São Mateus: que se localizava junto à ermida da mesma invocação, no actual Poço do Borratem, sendo mais tarde transformado numa mercearia por João da Regras.[1] No mesmo local foi erigido mais tarde o Hospício de S. Camilo de Lelis. É possível que este hospital mais não fosse que a albergaria de Payo Delgado.[2]


[1] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 9
[2] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 11

Nos tempos actuais, existe ainda no Largo do Poço do Borratém, próximo do Beco dos Surradores, uma casa com um grande arco ogival de cantaria, que dizem ser os restos da residência de João das Regras; resta-nos especular se seria aqui a localização da antiga Mercearia.


[1] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 12

sábado, 14 de abril de 2012

OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - Hospital-barraca do arraial de D. Afonso Henriques



Decorria o mês de Junho do ano da graça de 1147 quando as tropas de D. Afonso Henriques se reuniram com os exércitos de cruzados flamengos, coloneses, bolonheses, bretões e escoceses, no arrabalde de Lisboa; de comum acordo determinaram enviar parlamentários à cidade, nos quais se incluíam o Arcebispo de Braga e o Bispo do Porto, para uma tentativa de obter uma rendição pacífica dos muçulmanos que habitavam Lisboa; fizeram sinal de parte a parte, pactuando tréguas para que dissessem o que queriam. Discursou o Arcebispo de Braga, pedindo que entregassem apenas a fortaleza do castelo, por troca com o direito de manterem os habitantes da cidade as suas casas a liberdade pessoal; recusaram os árabes da cidade afirmando que “só a ferro se abrirão as portas da cidade[1]. Retirou-se então o rei para um monte a norte da cidade, iniciando no dia seguinte o cerco por parte de terra e pelo lado do mar; instalam-se os coloneses e flamengos a oriente, os ingleses e normandos a ocidente, construindo cada grupo uma igreja para sepultura dos mortos. Procede-se à construção de máquinas de guerra, minam-se as muralhas para criar brechas, apela-se a Deus, deixa-se morrer à míngua o povo aprisionado no castelo e peleja-se com violência entre sitiantes e sitiados, até ao mês de Outubro.

Segundo a Chronica dos Cónegos Regrantes de D. Nicolau de Santa Maria, D. Afonso Henriques mandou constituir junto de cada arraial uma enfermaria em tendas, para os feridos do cerco a Lisboa; cada tenda teria no seu topo um altar, onde foi colocada uma imagem da Santíssima Virgem da Conceição, lavrada em pedra de Ançan, que tomou o nome de Nossa Senhora da Enfermaria após ter servido aos feridos. Parece ter sido edificada mais tarde uma capela da mesma invocação, junto ao arraial dos alemães, situado a leste da cidade, no monte mais tarde ocupado por S. Vicente de Fora, a qual se encontra referenciada em bula pontifícia de Pio IV ao rei D. Sebastião em 1561. A cidade é tomada pelos cristãos, sendo organizada a partir da capela uma procissão comemorativa a 25 de Outubro de 1147, encabeçada por El-Rei e seguida por coloneses, bretões, flamencos, aquitanos, normandos e todo o povo, dirigindo-se às Portas do Sol.[2]

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- FRANÇAIS: L'hôpital-tente dans le camp des gens de guerre de D. Afonso Henriques:
Dans le mois de juin de 1147, quand les troupes du roi Afonso Henriques étaient réunies avec les armées des croisés flamands, colonais, bolognais, bretons et écossais, dans la banlieue de Lisbonne, il se sont mis d’accord pour envoyer des émissaires à la ville, comprenant l'archevêque de Braga et l'évêque de Porto, dans une tentative d'obtenir une renddition pacifique des musulmans qui habitaient à Lisbonne ce temps-là; après faire signe d'une partie à l’autre, les deux forces ont accordé des trêves pour dire ce qu'ils voulaient. Il y a parlé l'archevêque de Braga, en les demandant de se rendre et abandonner seulement la forteresse du château, en échange du droit de maintenir leurs maisons et avoir de la liberté personnelle; les Arabes ont refusé, en disant que "seulement le fer va ouvrir les portes de la ville". Après ça, le roi s’est écarté vers la colline au nord de la ville, pour commencer le siège le jour suivant, de la  côté de la terre et aussi par la mer; les colonais et les flamands s’installent à l’orient, les Anglais et Normands à l’occident de la forteresse, en construisant chaque groupe une église pour inhumation de ces morts. On commence la construction de machines de guerre et à saper les murs pour faire des brèches, on appelle à Dieu, on laisse mourir de faim la population emprisonnée dans le château et on bataille avec violence, assiégeants et assiégés, jusqu'au mois d'octobre.
D’après la Chronique des Chanoines Reguliers de Nicolau de Santa Maria, le roi Afonso Henriques a commandé la construction, près de chaque camp, d’une infirmerie dans des tentes pour les blessés du siège de Lisbonne; chaque tente aurait à sa tête un autel, où a été placée une image de la Vierge de l'Immaculée Conception, sculptée en pierre, qui a pris le nom de Notre Dame de l’Infirmerie après avoir servi les blessés. Il semble avoir été construite plus tard une chapelle dans la même invocation, à côté du camp des Allemands, situé à l'est de la ville, dans la colline occupé plus tard par le Monastère de S. Vicente de Fora, qui est référencée dans bulle papale de Pie IV au roi Sebastião en 1561. La ville a enfin été prise par les chrétiens, et pour le commémorer,  on a fait une procession le 25 Octobre 1147, dirigé par le roi, suivi par colonais, bretons, flamands, aquitaniens, normands et tout le peuple, s'adressant aux Portas do Sol (Portes du Soleil).

- ENGLISH: Hospital-tent of D. Afonso Henriques:
In June of 1147, when the troops of king Afonso Henriques met with the armies of Flemish, Cologne and Bologna people, British and Scots crusaders, in the suburbs of Lisbon, they determined to send to the city some parliamentarians, in which are included the Archbishop of Braga and the Bishop of Porto, in an attempt to get a peaceful surrender of the Muslims who lived in Lisbon; both sides agreed to a truce, to say what they wanted. The Archbishop of Braga made a speech, asking the surrender of the fortress, in exchange to less the townspeople in their homes and personal liberty. The Arabs refused, saying that "only the iron will open the gates "[1]. Then the king withdraw to a hill at north of the city, beginning the day after the siege by land and by sea side; the cologne and the flemish soldiers settled in east, the English and Normans in west, building each group a church for the burial of their dead. They proceed, building war machines and sapping the walls to create loopholes, appealing to God, letting the people imprisoned in the castle in starvation and fighting violently, besiegers and besieged, until the month of October. According to the Chronicle of the Regular Canons of Nicolau de Santa Maria, king Afonso Henriques has sent from each camp an infirmary tent for the wounded  of Lisbon’s siege; each tent would have an altar at the top, where it was placed an image of the Virgin of the Conception, carved in stone, named Lady of Infirmary after having served the wounded. It seems to have been built later a chapel with the same invocation, in the camp of the Germans, situated at east side of the city, on the hill later on occupied by S. Vicente de Fora Monastery, which is referenced in the papal bull of Pius IV to King Sebastian in 1561. The city was taken by Christians, who organized a commemorative procession from the chapel in the 25th October 1147, headed by the king, followed by cologne people, britons, flemish, aquitains, normans and all the people, addressing to the Porta do Sol (Sun Door).

[1] Anónimo, Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 – Carta de um Cruzado inglês que participou nos acontecimentos, apresentação e notas de José Felicidade Alves,  2ª Ed., Livros Horizonte, 2004, p. 42
[2] Júlio de Castilho, Lisboa Antiga – Bairros Orientais, 2ª ed., vol. II, Câmara Municipal de Lisboa, 1935, p. 219-220

OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - INTRODUÇÃO

A ideia de escrever sobre a história dos hospitais medievais da cidade de Lisboa surgiu por acaso da sorte. Encontrava-me eu arrumando, catalogando e limpando de décadas de pó alguns livros que tinham pertencido a meu avô materno, arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa, quando deparei com vários fascículos da Revista publicada em tempos idos por esta instituição estatal; por curiosidade, fui vendo o seu conteúdo, saltitando entre assuntos diversos, quando deparei com um pequeno artigo de duas folhas que versava sobre o assunto. Apesar de muito resumido, apresentava-se o tema de tal modo bem organizado, de modo quase científico, que fui atraída a lê-lo na íntegra. Quando terminei a leitura, surgiram-me no espírito numerosas questões: como seria a medicina no Portugal medieval? Que conhecimentos teria o Homem medieval sobre saúde, higiene, prevenção de doenças e seu tratamento? Como seriam organizadas as instituições que tratavam os doentes? As dúvidas foram-se avolumando no meu pensamento, apenas para concluir que muito pouco se sabia sobre o assunto.
Desde que me conheço que gosto de estudar História, com particular curiosidade para as épocas mais remotas e das quais menos se sabe. Acontece também que tenho um particular carinho pelo estudo da História de Lisboa, da sua topografia e toponímia, dos grandes factos e das irrelevâncias do seu percurso, dos costumes dos seus habitantes durante os milénios da ocupação do local pelos mais variados povos. Comecei a investigar o assunto dos hospitais utilizando inicialmente a grande rede que actualmente liga o mundo do conhecimento – a internet – e alguns artigos esparsos. Apesar de existirem várias obras e textos avulsos sobre História da Medicina em Portugal, poucos se poderão considerar adequados às exigências da historiografia moderna, sendo que muitos se encontram verdadeiramente desatualizados, com pouco trabalho de investigação original, profícuos de inexatidões, inapropriados para citações bibliográficas, existindo ainda numerosos documentos em separatas dispersas por variadas coleções documentais. Chamou-me a atenção o número elevado de erros encontrados em textos de História da Medicina, mais notório quanto mais recente a génese do documento e mais prevalente em textos escritos por médicos que por historiadores; segundo o conhecimento que já tinha por outras incursões em livros de História, procurei assim as minhas fontes em documentos mais antigos, saídos preferencialmente de estudos atribuídos a cronistas, historiadores ou olisipógrafos conceituados, os quais creio estarem tratados com maior exactidão.
Do mesmo modo que detectei deficientes informações nos trabalhos de médicos,  encontrei Também erros nos textos de historiadores quanto à interpretação da saúde e da doença, porventura por falta de contacto com essas matérias; e em todos os grupos profissionais anteriores se detectam igualmente noções incompletas de urbanismo, mais desenvolvidas nos trabalhos de arquitectos e engenheiros. Estes dados são por demais evidentes quando se observam as bibliografias dos respectivos trabalhos: uns não consultam as obras de outros. Deste modo, julgo conveniente que médicos, historiadores e urbanistas se encontrem no futuro com a lucidez de espírito suficiente para executar um trabalho conjunto, num verdadeiro espírito universalista, de modo a melhor compreender o passado comum da nossa civilização.
Para compreender a História medieval de Lisboa é necessário caminharmos sobre alguns conceitos e costumes da História geral da Idade Média; o leitor terá que se despir dos conceitos da actualidade e tomar a atitude do Homem medieval, completamente díspar em costumes, concepção religiosa e conhecimento científico, embrenhar-se na vivência da época com todos os seus órgãos dos sentidos e com a plenitude do seu raciocínio; só assim compreenderá a vivência desses tempos passados. A imagem visual  de Lisboa, encavalitada nas suas colinas, com os vales ocupados por correntezas de água, absolutamente aprisionada dentro de um espaço muralhado a que só a largueza dos campos nos seus arrabaldes permitia alguma construção de melhor qualidade, associa-se aos cheiros da abundância de especiarias e das imundícies acumuladas por falta de esgotos, aos sons dos pregões públicos e dos rodados das carroças, ao gosto da culinária e das mezinhas, à texturas dos tecidos de lã e estopa, que nos ajudam a compreender a cidade. Também o homem medieval foi peculiar, enclausurado em conceitos religiosos que lhe aprisionavam as ideias e que não tinha coragem de contestar, mas que lhe permitiam facilmente acabar com a vida do seu semelhante pelo gume da espada ou na fogueira dos autos de fé. A sociedade lutava intestinamente entre o radicalismo da destruição das outras religiões e raças e o reconhecimento de serem elas fonte de conhecimento científico e mundano, entre o estabelecimento de classes sociais bem distintas mas que interagiam no quotidiano, entre o objectivo da conquista do território nacional e o desejo de conhecer novos mundos.
O período Medieval ou Idade Média encontra-se definido entre a desintegração do Império Romano do Ocidente no séc. V e a do Império Romano do Oriente com a queda de Constantinopla no séc. XV. Esta era inclui a Alta Idade Média até ao séc. X, época da ocupação ibérica pelos povos do norte da Europa e pelos Muçulmanos, e a Baixa Idade Média iniciada no séc. XI. Em 411 entram no nosso território alanos, vândalos e suevos, sendo que apenas estes últimos organizaram um reino que incluía a Galiza e se estendia ao sul do Douro, com a capital em Braga; de referenciar que os suevos aceitaram a religião cristã, praticada já no território ao tempo dos romanos; em 416 chegaram os visigodos, que se envolveram em luta com os suevos até estes abandonarem totalmente o território em 585; em 589 o rei dos visigodos declarou-se católico e em 654 foi elaborada a lei geral que se aplicava a todos os povos da Península Ibérica – o Código Visigótico.
O território que actualmente corresponde a Portugal Continental ficou incluído no  Al-Andalus  - designação árabe da Península Ibérica ocupada pelos Muçulmanos no ano de 711 - até ao início da conquista cristã do território nos fins do século IX; durante este período sofreu o Al-Andalus três invasões normandas, em 844-845, em 859 e em 966, a primeira das quais fez danos consideráveis em Lisboa. A ocupação muçulmana do território português começou a conhecer o seu fim no século IX com a conquista cristã do condado portucalense, continuada pelos avanços iniciados por D. Afonso Henriques e terminados por D. Sancho II em 1250, existindo entre 200 e 500 anos (respectivamente do norte e do sul do país) de ocupação árabe do território a que hoje chamamos Portugal.
Para o estudo de factos situados na Idade Média convém saber que a contagem dos anos, dias e horas era diferente da actualmente utilizada. Os anos contavam-se pela era de César até 1422, altura em que foi modificada para a era de Cristo, retrocedendo-se 38 anos (os anos de 1422 a 1460 foram duplamente contados); os dias indicavam-se com o sistema romano de calendas, nonas e idos, correspondendo o primeiro dia das calendas ao primeiro dia do mês e sendo a contagem retrógrada (o número de dias das calendas fazia-se para trás a partir do 1º dia do mês correspondente), sendo que também era frequente a referência do dia ao santo correspondente das festas religiosas; as divisões do dia e da noite faziam-se em quatro horas de dia (prima, terça, sexta e nona ou noa) e três horas de noite[1]; o sistema económico baseava-se em moeda dos diferentes países europeus, circulando livremente a moeda estrangeira e sendo cunhada moeda portuguesa, fazendo da compreensão do câmbio uma árdua tarefa, da qual beneficiaram economicamente muitos dos nossos reis; foi progressivamente abandonada a numeração romana e a utilização do ábaco e adoptada a álgebra com o sistema árabe no quotidiano, mas o velho sistema continuou a ser usado pelos eruditos e em aplicações determinadas, o que ainda prevalece actualmente; na línguística progrediu-se do uso do latim para uma sua deturpação a que chamamos galaico-português, sem no entanto serem abandonados muitos vocábulos árabes, dos quais encontramos cerca de dez mil no português moderno, assim como palavras de outras origens como grego ou suevo. Assim é constituído o período medieval português, por uma tal miscelânea de culturas, em que o nosso povo tudo absorveu, interiorizou e modificou.
O estudo da capital de Portugal no período medieval encontra-se muito prejudicado pela perda de documentos ao longo dos tempos, para o que contribuíram batalhas e cercos, destruição de obras judias e muçulmanas, numerosos incêndios e vários terramotos; para tomarmos como exemplo o grande terramoto de Lisboa em 1755, ao qual se seguiu um enormíssimo incêndio, sabemos que ficaram perdidas para sempre a Grande Livraria do Mosteiro da Trindade (avaliada em 200 mil cruzados), três Livrarias em S. Domingos (uma com 3845 volumes, outra com 5943, e a famosa livraria manuscrita com 5600 volumes), a grande Livraria do Convento de S. Francisco (com 9000 volumes) e a grande livraria do Mosteiro do Espírito Santo[2]. Que perda inimaginável de preciosidades!
Vários autores se têm referido ao sistema hospitalar português quando se estuda História da Medicina, verificando-se, no entanto, uma incidência quase generalizada nas descrições dos hospitais ditos “modernos”, isto é, aqueles que foram fundados após o marco histórico constituído pelo Hospital de Todos-os-Santos. Pouco se tem estudado neste contexto o período medieval, provavelmente pela maior escassez de documentos e dificuldade acrescida de reunir dados bibliográficos coerentes que permitam contar a história de cada instituição. Será evidente porém que a medicina hospitalar moderna não existiria sem o contributo dos conhecimentos adquiridos durante toda a história da humanidade e certamente não seria correcto ignorarmos oito centúrias da nossa história hospitalar. Talvez por falta de documentação e de pesquisa sistemática, associada a uma interpretação “modernista” de Medicina, é tendência generalizada considerar a quase inexistência de cultura médica durante a Idade Média, denegrir o sistema hospitalar afirmando-o semelhante a hospedagem, afirmar que pouco se estudava medicina ou cirurgia no nosso país durante esse período. Veremos que essas afirmações não correspondem à verdade; o nosso povo caracteriza-se por um modo muito próprio de viver e de estabelecer regras, absorvendo a cultura de outros (incluído árabes e judeus), mas transformando-a e adaptando-a, tendencialmente não seguindo as regras alheias; parafraseando José Hermano Saraiva, Portugal “é um país onde grande parte da população teria de viver a parecer o que não era e a tentar esconder-se da morte clamando uma fé que não tinha”[3]. Não será ainda hoje assim?
Portugal foi no período medieval um país com uma maneira de viver muito própria, completamente diferente dos restantes países da Europa de então; mantendo as lutas territoriais semelhantes às do restante Velho Continente com os reinos nossos vizinhos, porque espartilhado, sem esperança de aumentar o seu território continental, dedicou-se a explorar o mar e encontrar terras distantes onde captar riquezas; tudo fizemos durante a Idade Média, até ao ano de 1500, desde a exploração da costa de África, a descoberta da Madeira e dos Açores, a passagem para o oceano Índico, a chegada por mar ao Oriente e o descobrimento do continente americano; nos anos seguintes limitámo-nos a desenvolver o que já estava feito. Não é pois credível que este povo não cuidasse da sua saúde do modo mais conveniente e adequado às exigências que se lhe impunham.
Este trabalho visa principalmente o estudo dos estabelecimentos de assistência conhecidos a partir da fundação da nacionalidade, correspondendo à Baixa Idade Média. Tem como enorme ausência o estudo do período muçulmano, para o qual não me foi possível compilar adequados conhecimentos. Trataremos apenas da informação que foi possível compulsar sobre os hospitais situados dentro do sistema muralhado da cidade de Lisboa ou situados perto desta, isto é, que na época se situavam a menos de um dia de viagem com ponto de partida na capital do reino. Em todo o estudo se considera apenas o conhecimento comprovado por fontes primárias ou secundárias, passíveis de por todos serem confirmadas; sabemos que o nosso conhecimento é ínfimo em relação com os factos ocorridos na época, em parte pela inexistência de documentação original, em parte devido a diversas e nem sempre correctas interpretações dos documentos consultados e escritos ao longo de séculos. Uma fonte que nos seria preciosa mas que nos está vedada, por aparentemente ter desaparecido, seria o tombo mandado executar por ordem de D. Manuel I, sobre as propriedades pertencentes às instituições hospitalares e de beneficência e respectivos rendimentos[4].
A tarefa de conhecer a história é árdua e infinita. Quando se inicia a pesquisa de um tema não se imagina a quantidade de bibliografia, crescendo exponencialmente à medida que saltitamos entre velhos livros e documentos e os sítios da internet, compilando frase por frase e referência por referência toda a informação que vai surgindo; reunir os dados encontrados num texto coerente será porventura ainda mais difícil. Esta pesquisa sobre os hospitais medievais de Lisboa não ficará certamente contida em si mesma e nunca estará terminada; outros lhe darão continuidade.


[1] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 25-26
[2] Paróquias da Baixa-Chiado, Memórias de Uma Cidade Destruída, Alètheia Editores, 2005, p. 169-170
[3] José Hermano Saraiva, História concisa de Portugal, Publicações Europa-América, 24ª ed., 2007, p. 81
[4] Rita Luis Sampaio da Nóvoa, A Casa de São Lázaro de Lisboa – Contributos para uma história das atitudes face à Doença (sécs. XIV – XV), dissertação de mestrado em história medieval, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 2010, p. 46-47