Considerado um dos mais importantes de
Lisboa, foi instituída em 1324, junto à Capela de São Bartolomeu, próximo da
Sé, para acolher 12 pobres envergonhados.[1] Não se sabe ao certo quem
foi Bartolomeu Joanes; era certamente um “cidadão de Lisboa” , segundo o seu
epitáfio, nobre ou nobilitado, porventura tabelião ou mercador, amigo de D.
Diniz.[2]
Parece no entanto ter sido homem de largas vistas sociais e conhecimentos avançados,
construindo o que, na época, se poderia considerar um hospital “moderno”, como
veremos.
No seu testamento, exigia Bartolomeu
Joanes que o seu hospital para 12 pobres decaídos da fortuna, comportasse também
privada (latrina) e que “haja uma cozinha
apartada, em que possam bem cozinhar em guisa que não faça nojo no paço...”.[3]
Determinou ainda o fundador que cada pobre deveria receber diariamente três
soldos para pão, conduto e vinho e anualmente doze côvados de contrafeito ou de
valenciana para fazer pelote, capeirão, saia e calças, vinte soldos para
calçadura e igual quantia para camisas e panos melhores e uma vez por ano cinco
soldos para sangrias. Os leitos deveriam ter almadraque (enxerga de lã de carneiro),
cocedra (colchão de penas), almocela (coberta), dois chumaços (almofadas) de
penas, dois lençóis, uma manta e uma colcha. O hospital deveria ter possessões
que rendessem mil libras cada ano para manter cada doente.[4] Vemos pois que este foi um
hospital mandado construir de raíz para o fim a que se proporcionava,
contemplando já medidas de higiene, conforto e gestão apropriadas, embora ainda
distanciado do que na época se construía no estrangeiro.
Mandou Bartolomeu Joanes construir na
Sé a Capela de S. Bartolomeu, de modo a providenciar sede ao hospital, onde os
capelães e os pobres do hospital haveriam de orar por sua alma e pela saúde de
el-Rei D. Diniz e restante família real;[5] esta capela tinha a meia
altura um pavimento de madeira, que a dividia em dois andares com vários compartimentos.[6] Os
bens da capela seriam incorporados na coroa, por conta do Hospital de S. José,
resultando a completa abolição dos respectivos encargos em 1796. Existe ainda
actualmente na Sé de Lisboa, a capela de Bartolomeu Joanes, com construção dos
princípios do séc. XIV, em estilo românico e restauro posterior gótico, digna
de ser visitada: nela se encontra o túmulo do seu instituidor, com estátua
sobre a tampa e epitáfio que nos indica a data do falecimento em 1362 (da era
de César, correspondente a 1324 da era cristã), uma inscrição na parede com o
regulamento da capela[7] e o
presépio da autoria de Machado de Castro.
Para melhor compreensão dos propósitos
de Bartolomeu Joanes e para quem for curioso destes assuntos, tomamos a
liberdade de aqui deixar um trecho de cópia (com prováveis erros da cópia) do seu
testamento, relativo ao hospital:
“... Estabeleço e ordeno hum hospital a honrra de Deos e da Virgem
Coroada Santa Maria Rainha dos Anjos, e do bemaventurado Appostollo S.
Bartholameo, por cujo o nome eu sou chamado, que ele nom catando os meus
merecimentos seja sempre rogador por mim a Deos, e por minha alma que nom seja
perdida, e a escolha e leve para si; ao qual esprital mando e quero e ordeno,
que se mantenham doze pobres para todo o sempre daquelas coizas que lhe mister
fizerem, elhe forem necessárias, e para remover e tirar duvida de qual guiza se
deve manter, e para declarar esto minha vontade ordeno que cada hum pobre dos
ditos pobres hajam em cada hum dia para sempre de provisão três soldos para pão
e para vinho, e para conduto. Item ordeno e mando, que cada um dos ditos pobres
hajam em cada hum anno para seu vestir doze covados de contrafeito ou de
valenciana para o pellote, e capeirão e saia e para calças. Item vinte soldos
para calsadura, e vinte soldos a cada um delles para camisas e panos melhores,
e de mais cinco soldos hũa vez do anno para suas sangrias, e quero de mais e ordeno que os ditos
pobres de cada dia vão à dita minha capella todalas horas, convem a saber ás
Missas e ás vesporas e roguem ahi a Deus por mim que se amerceie da minha alma,
como sabe que a mim cumpre; pera o qual esprital mando fazer hum nobre paço
pelos meus bens assim como os meus testamenteiros virem que cumpre; e seja
feito na freguesia e perto donde fôr a dita minha capella, com tal logar que
não seja grande nojo aos ditos pobres quando forem ouvir as horas; no qual paço
mando e ordeno que todos comam emsembra a uma tavola, e mando no dito paço pôr
doze leitos, e seja cada um leito de uma almadia que é de lã de carneiros, e de
uma cocedra de penna, e de uma almaceda de dois chumaços outrossim de penna, e
de dois lençoes e de uma manta e uma colcha, e assim a cada um dos outros
leitos; no qual quero e mando que haja uma cosinha apartada, em que possam bem
cosinhar em guiza que não faça nojo no paço, e não alhures; outrossim que haja
hy uma privada para se poderem haver outra casa pequena metão com o dito paço
para cosinha, e outra parte para privada ante a comprem, e facam da guiza que
da cosinha possão servir no paço por porta que minha vontade é que no dito paço
haja tão somente dormidoiro e refeitório, e não al; e a dita cosinha ser
estremeada por sy, e como quer que eu a cada hum d’estes pobres mando dar três
soldos para comerem em cada dia. Tenho por bem que hajam um mancebo de soldada
que lhes merque e cosinhe e uma manceba que lhes sirva e lhes amace; e se tanto
sobejar d’esta provisão, manteudos eles, tambem como os de santo, ou melhor,
porque os ditos mancebos possam haver suas soldadas pagadas, os meus
testamenteiros lhes paguuem desto se nom paguem nos deregido, que ficar de
posiçoens desse hospital e capella; e de mais quero que haja hi uma lampada que
arça de noite para sempre, que se possam ver estes pobres; e que estes pobres
sejam bons e vergonhosos, d’aquelles que houveram algo, e caíram em pobreza, e
para se esto cumprir e manter para sempre, mando e ordeno que os meus
testamenteiros comprem taes possessões, que rendam muito bem em cada um anno
mil livras em salvo, e que esto nom faça nem possa minguar, e comprido todo
esto segundo eu mando, do resido que ficar mando que se guarde em cada anno
para repairamento e refazimento do hospital, e mantimento dello,...”
[1]
Fernando da Silva Correia, Os Velhos
Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de
Lisboa, 1941, p. 12
[2]
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga –
Bairros Orientais, 2ª ed., vol. VI, Câmara Municipal de Lisboa, 1936, p.
104-106
[3] A.
H. De Oliveira Marques, A Sociedade
Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera
dos Livros, 2010, p. 120
[4]
Augusto da Silva Carvalho, Crónica do Hospital de Todos-os-Santos, Edição do V
Centenário da Fundação do Hospital Real de Todos-os-Santos, 1992, p. 285
[5]
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga –
Bairros Orientais, 2ª ed., vol. VI, Câmara Municipal de Lisboa, 1936, p.
246-247
[6]
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga – Bairros
Orientais, 2ª ed., vol. V, Câmara Municipal de Lisboa, 1936, p. 57-59
[7]
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga –
Bairros Orientais, 2ª ed., vol. VI, Câmara Municipal de Lisboa, 1936, p.
113-119
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