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OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - HIGIENE E SAÚDE

Lisboa seria na Idade Média uma cidade suja, uma vez que se encontram vários documentos legislando sobre a higiene da cidade; as ruas encontravam-se repletas de lixo doméstico, esterqueiras, do conteúdo dos Camareiros (bacios) lançado na via pública, de cadáveres de animais e dejectos das bestas de carga e transporte. O Conselho de Lisboa e por vezes o próprio rei estabeleciam regras para limpeza das ruas: “... farão alimpar a cidade, cada um ante a sua porta da rua (hábito que ainda hoje se conserva no Alentejo), dos estercos e maus cheiros; e farão em cada freguesia tirar cada mês uma esterqueira e lançar fora o esterco, nos lugares onde se há-de lançar” e ainda policiar de modo a que “se não faça em ela esterqueira, nem lancem em redor do muro esterco nem outro lixo, nem se atapem os canos da cidade ou vila, nem as servidões das águas”.[1]
O urbanismo não contemplava geralmente o saneamento básico, excepção feita a uma estrutura de escoamento de efluentes da cidade denominada Rego Merdeiro, situado na Rua do Morraz, freguesia de S. Julião. Sabe-se porém, que já existiam alguns canos que esgotavam latrinas e águas pluviais, balneários públicos, calcetamento de umas quantas ruas e água potável canalizada para chafarizes. Sabemos que em 1384 já existia uma rede de escoamento das águas pluviais na cidade; conta-nos Fernão Lopes, que após o levantamento do cerco de Lisboa, em 24 de Outubro, houve uma tal tempestade e aguaceiro, que a água inundou a cidade: “Ca sua abastança foi tanta que, nom cabendo pelos canos da serventia da cidade, per hu tem costume de se livrar quando chove, represárom no muro em tanta multidom, que, saindo pela porta de S. Vicente, dava a água pela metade do postigo.”[2] A construção de um sistema completo de esgotos foi ordenada em 1486 por D. João II.[3]
Em 1552 contabilizavam-se em Lisboa 2 “homens que têm por ofício andar pela cidade apanhando alvas (excrementos) de cão”,[4]  4 “homens que andam com suas carretas pela cidade alimpando da lama e as mais sujidades”,[5] 20 “homens que andam pela praia, ao longo dela, a lavar a terra[6] e 1.000 “negras que andam pela cidade com canastra, alimpando a cidade”.[7] Existia pois um sistema mais ou menos organizado de limpeza da cidade.
O hábito do banho era mais frequente no sul da Europa, por influência das civilizações greco-romana e muçulmana; era costume pentear cabelo e barba, as roupas eram lavadas com frequência e existia o costume de lavar as mãos antes e depois de cada refeição “Deram-lhe água às mãos para se lavar; e trouxeram-lhe uma iguaria de perdizes assadas[8]. No interior das habitações existiam lavatórios, banheiras e latrinas, estas últimas sobretudo nas casas mais abastadas.[9] O hábito de lavar as mãos antes da refeição era praticado com a utilização de justas ou gomis, de prata ou outro metal e bacias grandes, com água simples ou perfumada, que os servidores traziam à mesa.[10]
Dentro das medidas ditas higiénicas, a alimentação tinha um papel primordial. Os costumes da Idade Média incluíam o consumo de carnes variadas, consideradas indispensáveis a uma adequada conservação da saúde (boi, cabra, ovelha, porco, aves de criação, cervo e urso), assim como peixe de mar e de rio,[11] fresco, seco ao sol, salgado ou defumado Temos que, em sessenta e oito dias no ano, a religião católica proibia o consumo de carne, pelo que o país consumia peixe e marisco em abundância[12]. Nota-se, como prática habitual da culinária, a lavagem da carne e do peixe com água, antes de proceder ao cozinhado.
O tempero ou “adubo” fazia-se com especiarias várias (pimenta, cominhos, açafrão, gengibre, canela, mostarda), que pagavam portagem à entrada das cidades, sendo frequentemente comercializados em feiras por mouros e judeus[13]; no decorrer da época medieval, as especiarias foram-se tornando mais comuns, à medida que avançava a exploração da costa africana; a pimenta era também utilizada como fármaco;[14]  vários vegetais seriam utilizados na culinária com frequência (eruga, cebola, alho, hortelã, poejo); as saladas eram consumidas habitualmente, assim como o era o consumo pelo povo de hortaliças, legumes e frutas, frescas ou secas. A castanha substituía a batata e o pão, principalmente no norte do país. Igualmente se consumiam lacticínios (leite, que também servia como medicamento, manteiga e queijo), banha, ovos, vinagre, mel, sendo o azeite largamente consumido; o açúcar era primordialmente importado, embora se conheça a existência de plantações de cana sacarina no Algarve e na Madeira.[15]
Faltavam na alimentação produtos ainda não conhecidos, como o perú, o milho maíz (originários do continente americano), a batata (substituída pela castanha), o chá, o café e o chocolate.
O vinho era de consumo comum, tanto de pobres como de ricos, tal como podemos concluir da ordem de D. Fernando, quando da construção da muralha fernandina: “Açerca do logar omde lavravom, avia praças de pam e de vinho, e doutros mantijmentos...”;[16]  havia-o vermelho, rosete, branco, formiguento (gasoso?), sendo que também era largamente utilizado nas curas, por conselho dos físicos.[17] Considerava-se habitualmente que esta bebida deveria ser consumida com moderação, pois seria prejudicial à saúde quando ingerida em excesso, mas igualmente traria prejuízos se de todo não fosse usada.
Certo é que a alimentação devia ser equilibrada, tanto em qualidade como em quantidade, de modo a ter uma boa saúde. Já se conheciam alguns malefícios do excesso alimentar, como se atesta na opinião de D. João I sobre o assunto, no Livro da Montaria: entre as coisas “que tolhem de haver bom fôlego estão (...) os mui grandes vícios do comer, e do beber sem razão (...); disem que quando o corpo está quedo, que então as humidades crescem sobejas fora da natureza, e quando assim são muitas, que então sobem à cabeça: e quando a multidão é grande não podem baixar por os lugares que devem fazer, então descendem aos canos dos bofes por que vem o fôlego, e tapa-os, e então faz os bofes pesados em tal guisa, que não podem tão bem aventar como devem, e assim fica que não pode haver um tão bom fôlego, como deve”.[18] Teremos melhor descrição dos malefícios da obesidade?
Sabemos ainda que Lisboa era uma cidade de muitos poços e fontes, alguns dos quais, na tradição popular, teriam propriedades benéficas para a saúde, como o que se encontrava no interior da igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, erigida na rua Nova dos Ferros, ao qual “inumerável gente concorria a beber” por se dizer “ter curado algumas enfermidades” e que ao tempo do terramoto “se exauriu e ficou chão com a terra pela elevação desta”.[19]


[1] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 120
[2] Fernão Lopes, Primeira parte da Crónica de D. João I, vol III, 2ª ed., Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand, 1922, p. 213-214
[3] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 121
[4] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 198
[5] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 203
[6] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 200
[7] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 213
[8] Anónimo do séc. XV, adaptado por Jaime Cortesão, Crónica do Condestável de Portugal, 5ª ed., Sá da Costa, 1961, p. 211
[9] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 117-121
[10] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 39
[11] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 18-23
[12] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 30
[13] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 26
[14] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 28
[15] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 45-46
[16] Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Lisboa, Livraria Civilização, 1979, p 235
[17] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 33-34
[18] Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, p. 101
[19] Paróquias da Baixa-Chiado, Memórias de Uma Cidade Destruída, Alètheia Editores, 2005, p. 133 e 144

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