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OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - O HOSPITAL MEDIEVAL

Pouco se sabe do sistema assistencial dos doentes em Lisboa durante a Alta Idade Média, embora tenhamos conhecimento de alguns médicos residentes no Al-Andalus, como Ibn Yulyul, Abu Marwan ‘Abd al-Malik ibn Zuhr (latinizado Avenzoar, nasceu em 1091 em Sevilha), Abu ‘l-Walid Muhammad ibn Ahmed ibn Muhammad ibn Rushd (nascido em 1126 na cidade de Córdova, discípulo de Ibn Zuhr e conhecido na Europa como Averroes), Abu al-Qasim khalaf ibn al-‘Abbas (conhecido pelos seus contemporâneos como al-Zahrawi e latinizado Albucasis, nascido em Al Zahra, ao norte de Córdova, em 938, considerado na cultura Árabe como “o pai da Cirurgia”)[1], assim como os judeus Hasday Ibn Saprut e Musa ibn Maymun (latinizado Maimonides, nascido em Córdova em 1114). O califa de Córdova Aláqueme II era um homem culto, possuindo uma vasta coleção de livros e protegendo a literatura e a ciência; entre os homens mais proeminentes da sua corte encontrava-se Abú Abdalah Mohâmede ibne Abdune Alodhiri, físico, muito sabedor de medicina e botânica, que para aperfeiçoar os seus conhecimentos trabalhou no Egipto, onde dirigiu um hospital durante algum tempo; regressado ao Andaluz foi nomeado físico-chefe pelo califa.[2]
Sabe-se que o mundo árabe tinha hospitais – bimaristan ou mais simplesmente maristan – abertos a todos, recolhendo doentes para promover o tratamento ou a recuperação das mais variadas doenças e traumatismos, incluindo doenças mentais; as maiores instituições estavam associadas a escolas médicas e bibliotecas, onde os futuros médicos eram ensinados, examinados e licenciados.[3] Este povo foi também o percursor dos hospitais ambulantes, bem conhecidos no século XI, tendas que se deslocavam entre as diversas povoações com o objectivo de trazer cuidados médicos às populações que se encontrassem demasiado distantes ou doentes para se dirigirem aos bimaristans;[4] Portugal não deve ter sido excepção nestes costumes.
Com o crescimento demográfico e o aumento das doenças contagiosas epidémicas que contribuíam para alta mortalidade, tornava-se necessário prover instituições que apoiassem doentes, velhos e inválidos. Sendo Lisboa uma cidade abastada, com variadas comunidades religiosas de diferentes credos e uma miríade de estrangeiros que se dedicavam sobretudo ao comércio, foi inevitável o surgimento de numerosos hospitais. Podemos afirmar que o primeiro deles foi tão antigo como a própria nação, dado que D. Afonso Henriques ordenou que se montasse no seu arraial uma provisória enfermaria, quando do cerco a Lisboa – nasceu assim o primeiro hospital militar da nossa história.[5]
O hospital cristão da Idade Média era uma pequena instituição economicamente independente à custa de rendas de propriedades doadas por beneméritos, com regulamentos de funcionamento que na generalidade garantiam prioritariamente os direitos dos doentes e pobres e que exigiam aos funcionários rigorosos deveres.[6] Alguns dos hospitais foram fundados por ordem régia, sendo mantidos a expensas do rei.
Apesar do tempo decorrido até à actualidade e da perda de muitos documentos no terramoto de 1755, são identificados por José Nogueira em 1934, 42 hospitais, 4 gafarias e 13 albergarias, num total de 59 instituições.[7] Na nossa pesquisa encontrámos existência certa de 4 instituições de banhos, 68 hospitais e 5 gafarias em Lisboa. Ignora-se em muitos a data de fundação, o nome dos seus beneméritos e até a data em que terminaram as suas funções, pelo que não se pode afirmar que tenham funcionado simultaneamente. Quanto à sua localização precisa, também não chegou até nós informação que permita a sua rigorosa determinação, embora na sua maioria seja possível determinar a freguesia onde se situavam. Sabe-se ainda que muitos mosteiros possuíam igualmente enfermarias, assim como era dada hospitalidade a enfermos em muitas casas nobres de Portugal.
As funções destes hospitais eram algo diferentes da visão actual; na época, estas casas davam hospitalidade a pobres e peregrinos, doentes ou sãos, padecendo de doença aguda ou crónica. Na generalidade, tinham diversas nomenclaturas em relação com as funções: os Hospitais tratavam doentes, as Albergarias acolhiam gente de passagem, as Gafarias, lazaretos ou leprosarias recolhiam leprosos e as Mercearias e hospitais de meninos abrigavam idosos e inválidos ou crianças; existiam ainda os hospitais de Banhos, onde se praticavam tratamentos termais, como o da Judiaria Grande de Lisboa, que terá sido porventura um dos mais antigos do mundo. Havia hospitais exclusivamente para crianças, outros apenas para “incuráveis”, alguns albergando um dos sexos, outros mistos. As obrigações dependiam sobretudo do desejo dos seus fundadores, algumas vezes por legado testamentário. Na generalidade, calcula-se que a média de camas fosse de 5, uma vez que a lotação variava muitíssimo; o maior número de camas conhecido foi de 25, no hospital dos incuráveis, situado nas Fangas da Farinha.
A administração hospitalar dependia das disposições dos seus fundadores e das circunstâncias do momento, podendo ser religiosa, secular ou leiga, assim como individual ou colectiva, por vezes zelosa e honesta, outras vezes desleixada, parasitária ou rapace.[8] A ausência de poder central sobre a administração dos hospitais conduzia à negligência dos serviços de assistência para que tinham sido criados, sendo a vontade dos testadores alterada pela má gestão e os rendimentos frequentemente utilizados em benefício próprio dos administradores.[9] A má administração conduziu à emissão de um regulamento em 1470, de modo a melhor prover a gestão dos bens dos hospitais.[10] Muitos dos estabelecimentos de assistência encontravam-se na dependência do clero, mas sobretudo a partir do séc. XIV, começaram a surgir numerosas confrarias de leigos que estabeleciam pequenos hospitais para os seus doentes. Essas confrarias laicas eram geralmente designadas pelo nome do hospital que mantinham, diferenciando-se das confrarias religiosas instituídas em capelas; os hospitais das confrarias eram frequentemente designados pelas profissões que os tinham criado; as confrarias (associações formadas por homens livres para se ajudarem mutuamente, material e espiritualmente) funcionavam em regra de modo precário, destinadas a proteger apenas os seus agremiados; os seus hospitais foram mais tarde extintos e incorporados no Hospital Real de Todos-os-Santos, com conversão dos bens e rendimentos; os vinte e quatro representantes destas confrarias de mesteirais passaram a tomar parte das reuniões em casa própria no Hospital de Todos-os-Santos, originando a designação de Casa dos Vinte e Quatro.[11] À luz dos tempos actuais, estas confrarias não eram mais que associações de socorros mútuos, tendo sido obrigadas à “nacionalização” a favor do estado, por decreto real.
Ao longo da Idade Média foram-se acumulando queixas e acusações devido a múltiplos interesses acumulados, o que conduziria ao desejo de reforma iniciado por D. Afonso V e mais tardiamente concretizado por D. João II, pela rainha D. Leonor e D. Manuel I, com a formação do Hospital Real de Todos-os-Santos agregando 43 dos hospitais medievais de Lisboa. A esta progressiva destituição das várias administrações e construção de leis sob alçada directa do rei, também não será alheia a tendência política de poder real absoluto no fim da idade Média. Segundo Ruy de Pina, mandou D. João II fundar e começar a construção do Hospital de Todos-os-Santos no ano de 1492, localizando-o na horta do mosteiro de São Domingos e determinando que ficasse sob exclusiva e directa dependência do Rei.
Em 23 de Setembro de 1503 foi escrito um documento que incorpora alguns hospitais de Lisboa no Hospital de Todos-os-Santos “... e por quanto em alguns hospitais desta cidade que por bem da bula do Santo Padre a este Hospital de Todos-os-Santos com todas as suas rendas se ajuntaram e anexaram...”, ao qual está apensa uma lista, da qual constam os seguintes hospitais: dos Meninos, de Rocamador, do Conde D. Pedro, de D. Maria de Aboim, de Santo Estaço, de Santo Espírito da Pedreira, dos Homens e Banho, de Salomão Negro, de S. Vicente dos meninos, dos Hortelões ou Almoinheiros, de S. Jorge, de Santa Maria das Mercês, de S. Pedro Mártir e dos Alfaiates.[12]
Apesar de se considerar que o Hospital de Todos-os-Santos integrou muitos dos antigos hospitais de Lisboa e seu termo, sabemos que esta integração não foi, como poderíamos supor, total e completa, isto é, alguns dos hospitais integrados continuaram a existir tal como anteriormente, embora sob a coordenação do novo Hospital Real; comprovação desta política é encontrada no Sumário de Cristóvão Rodrigues de Oliveira: “El-Rei D. João o segundo edificou o Hospital de Todos-os-Santos, cabeça de todos os outros hospitais (...) Houve o dito rei bula do Papa para que muitos hospitais que havia nesta cidade e termo, principalmente o hospital dos Meninos, fossem trazidos a este com todos os seus encargos. (...) E mandou que o provedor do hospital provesse todas as capelas, hospitais e albergarias da cidade e seu termo;[13]


[1] David W. Tschanz, Pioneer Physicians, Saudi Aramco Word, vol 62, nº 1, January/February 2011, Aramco Services Company, Houston, 2011, p. 34-39
[2] António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, 3ª ed. Caminho, Lisboa, 2008, p. 221-2228
[3] David W. Tschanz, Pioneer Physicians, Saudi Aramco Word, vol 62, nº 1,J anuary/February 2011, Aramco Services Company, Houston, 2011, p. 34-39
[4] David W. Tschanz, Pioneer Physicians, Saudi Aramco Word, vol 48, nº 3, May/June 1997, Aramco Services Company, Houston, 1997, p. 20-31
[5] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 6
[6] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 3-4
[7] Mário Carmona, O Hospital Real de Todos-os-Santos da Cidade de Lisboa, 1954, p. 34
[8] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 8
[9] Isabel dos Guimarães Sá, Os Hospitais portugueses entre a Assistência medieval e a intensificação dos cuidados médicos no período moderno, p. 91, em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/4313/1/hospitais.pdf
[10] Mário Carmona, O Hospital Real de Todos-os-Santos da Cidade de Lisboa, 1954, p. 19
[11] Mário Carmona, O Hospital Real de Todos-os-Santos da Cidade de Lisboa, 1954, p. 155
[12] Mário Carmona, O Hospital Real de Todos-os-Santos da Cidade de Lisboa, 1954, p. 153-154
[13] Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 - Sumário (em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa), Livros Horizonte, 1987, p. 58

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