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OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - INTRODUÇÃO

A ideia de escrever sobre a história dos hospitais medievais da cidade de Lisboa surgiu por acaso da sorte. Encontrava-me eu arrumando, catalogando e limpando de décadas de pó alguns livros que tinham pertencido a meu avô materno, arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa, quando deparei com vários fascículos da Revista publicada em tempos idos por esta instituição estatal; por curiosidade, fui vendo o seu conteúdo, saltitando entre assuntos diversos, quando deparei com um pequeno artigo de duas folhas que versava sobre o assunto. Apesar de muito resumido, apresentava-se o tema de tal modo bem organizado, de modo quase científico, que fui atraída a lê-lo na íntegra. Quando terminei a leitura, surgiram-me no espírito numerosas questões: como seria a medicina no Portugal medieval? Que conhecimentos teria o Homem medieval sobre saúde, higiene, prevenção de doenças e seu tratamento? Como seriam organizadas as instituições que tratavam os doentes? As dúvidas foram-se avolumando no meu pensamento, apenas para concluir que muito pouco se sabia sobre o assunto.
Desde que me conheço que gosto de estudar História, com particular curiosidade para as épocas mais remotas e das quais menos se sabe. Acontece também que tenho um particular carinho pelo estudo da História de Lisboa, da sua topografia e toponímia, dos grandes factos e das irrelevâncias do seu percurso, dos costumes dos seus habitantes durante os milénios da ocupação do local pelos mais variados povos. Comecei a investigar o assunto dos hospitais utilizando inicialmente a grande rede que actualmente liga o mundo do conhecimento – a internet – e alguns artigos esparsos. Apesar de existirem várias obras e textos avulsos sobre História da Medicina em Portugal, poucos se poderão considerar adequados às exigências da historiografia moderna, sendo que muitos se encontram verdadeiramente desactualizados, com pouco trabalho de investigação original, profícuos de inexactidões, inapropriados para citações bibliográficas, existindo ainda numerosos documentos em separatas dispersas por variadas colecções documentais. Chamou-me a atenção o número elevado de erros encontrados em textos de História da Medicina, mais notório quanto mais recente a génese do documento e mais prevalente em textos escritos por médicos que por historiadores; segundo o conhecimento que já tinha por outras incursões em livros de História, procurei assim as minhas fontes em documentos mais antigos, saídos preferencialmente de estudos atribuídos a cronistas, historiadores ou olisipógrafos conceituados, os quais creio estarem tratados com maior exactidão.
Do mesmo modo que detectei deficientes informações nos trabalhos de médicos,  encontrei também erros nos textos de historiadores quanto à interpretação da saúde e da doença, porventura por falta de contacto com essas matérias; e em todos os grupos profissionais anteriores se detectam igualmente noções incompletas de urbanismo, mais desenvolvidas nos trabalhos de arquitectos e engenheiros. Estes dados são por demais evidentes quando se observam as bibliografias dos respectivos trabalhos: uns não consultam as obras de outros. Deste modo, julgo conveniente que médicos, historiadores e urbanistas se encontrem no futuro com a lucidez de espírito suficiente para executar um trabalho conjunto, num verdadeiro espírito universalista, de modo a melhor compreender o passado comum da nossa civilização.
Para compreender a História medieval de Lisboa é necessário caminharmos sobre alguns conceitos e costumes da História geral da Idade Média; o leitor terá que se despir dos conceitos da actualidade e tomar a atitude do Homem medieval, completamente díspar em costumes, concepção religiosa e conhecimento científico, embrenhar-se na vivência da época com todos os seus órgãos dos sentidos e com a plenitude do seu raciocínio; só assim compreenderá a vivência desses tempos passados. A imagem visual  de Lisboa, encavalitada nas suas colinas, com os vales ocupados por correntezas de água, absolutamente aprisionada dentro de um espaço muralhado a que só a largueza dos campos nos seus arrabaldes permitia alguma construção de melhor qualidade, associa-se aos cheiros da abundância de especiarias e das imundícies acumuladas por falta de esgotos, aos sons dos pregões públicos e dos rodados das carroças, ao gosto da culinária e das mezinhas, à texturas dos tecidos de lã e estopa, que nos ajudam a compreender a cidade. Também o homem medieval foi peculiar, enclausurado em conceitos religiosos que lhe aprisionavam as ideias e que não tinha coragem de contestar, mas que lhe permitiam facilmente acabar com a vida do seu semelhante pelo gume da espada ou na fogueira dos autos de fé. A sociedade lutava intestinamente entre o radicalismo da destruição das outras religiões e raças e o reconhecimento de serem elas fonte de conhecimento científico e mundano, entre o estabelecimento de classes sociais bem distintas mas que interagiam no quotidiano, entre o objectivo da conquista do território nacional e o desejo de conhecer novos mundos.
O período Medieval ou Idade Média encontra-se definido entre a desintegração do Império Romano do Ocidente no séc. V e a do Império Romano do Oriente com a queda de Constantinopla no séc. XV. Esta era inclui a Alta Idade Média até ao séc. X, época da ocupação ibérica pelos povos do norte da Europa e pelos Muçulmanos, e a Baixa Idade Média iniciada no séc. XI. Em 411 entram no nosso território alanos, vândalos e suevos, sendo que apenas estes últimos organizaram um reino que incluía a Galiza e se estendia ao sul do Douro, com a capital em Braga; de referenciar que os suevos aceitaram a religião cristã, praticada já no território ao tempo dos romanos; em 416 chegaram os visigodos, que se envolveram em luta com os suevos até estes abandonarem totalmente o território em 585; em 589 o rei dos visigodos declarou-se católico e em 654 foi elaborada a lei geral que se aplicava a todos os povos da Península Ibérica – o Código Visigótico.
O território que actualmente corresponde a Portugal Continental ficou incluído no  Al-Andalus  - designação árabe da Península Ibérica ocupada pelos Muçulmanos no ano de 711 - até ao início da conquista cristã do território nos fins do século IX; durante este período sofreu o Al-Andalus três invasões normandas, em 844-845, em 859 e em 966, a primeira das quais fez danos consideráveis em Lisboa. A ocupação muçulmana do território português começou a conhecer o seu fim no século IX com a conquista cristã do condado portucalense, continuada pelos avanços iniciados por D. Afonso Henriques e terminados por D. Sancho II em 1250, existindo entre 200 e 500 anos (respectivamente do norte e do sul do país) de ocupação árabe do território a que hoje chamamos Portugal.
Para o estudo de factos situados na Idade Média convém saber que a contagem dos anos, dias e horas era diferente da actualmente utilizada. Os anos contavam-se pela era de César até 1422, altura em que foi modificada para a era de Cristo, retrocedendo-se 38 anos (os anos de 1422 a 1460 foram duplamente contados); os dias indicavam-se com o sistema romano de calendas, nonas e idos, correspondendo o primeiro dia das calendas ao primeiro dia do mês e sendo a contagem retrógrada (o número de dias das calendas fazia-se para trás a partir do 1º dia do mês correspondente), sendo que também era frequente a referência do dia ao santo correspondente das festas religiosas; as divisões do dia e da noite faziam-se em quatro horas de dia (prima, terça, sexta e nona ou noa) e três horas de noite[1]; o sistema económico baseava-se em moeda dos diferentes países europeus, circulando livremente a moeda estrangeira e sendo cunhada moeda portuguesa, fazendo da compreensão do câmbio uma árdua tarefa, da qual beneficiaram economicamente muitos dos nossos reis; foi progressivamente abandonada a numeração romana e a utilização do ábaco e adoptada a álgebra com o sistema árabe no quotidiano, mas o velho sistema continuou a ser usado pelos eruditos e em aplicações determinadas, o que ainda prevalece actualmente; na línguística, progrediu-se do uso do latim para uma sua deturpação a que chamamos galaico-português, sem no entanto serem abandonados muitos vocábulos árabes, dos quais encontramos cerca de dez mil no português moderno, assim como palavras de outras origens como grego ou suevo. Assim é constituído o período medieval português, por uma tal miscelânea de culturas, em que o nosso povo tudo absorveu, interiorizou e modificou.
O estudo da capital de Portugal no período medieval encontra-se muito prejudicado pela perda de documentos ao longo dos tempos, para o que contribuíram batalhas e cercos, destruição de obras hebraicas e muçulmanas, numerosos incêndios e vários terramotos; para tomarmos como exemplo o grande terramoto de Lisboa em 1755, ao qual se seguiu um enormíssimo incêndio, sabemos que ficaram perdidas para sempre a Grande Livraria do Mosteiro da Trindade (avaliada em 200 mil cruzados), três Livrarias em S. Domingos (uma com 3845 volumes, outra com 5943, e a famosa livraria manuscrita com 5600 volumes), a grande Livraria do Convento de S. Francisco (com 9000 volumes) e a grande livraria do Mosteiro do Espírito Santo[2]. Que perda inimaginável de preciosidades!
Vários autores se têm referido ao sistema hospitalar português quando se estuda História da Medicina, verificando-se, no entanto, uma incidência quase generalizada nas descrições dos hospitais ditos “modernos”, isto é, aqueles que foram fundados após o marco histórico constituído pelo Hospital de Todos-os-Santos. Pouco se tem estudado neste contexto o período medieval, provavelmente pela maior escassez de documentos e dificuldade acrescida de reunir dados bibliográficos coerentes que permitam contar a história de cada instituição. Será evidente porém que a medicina hospitalar moderna não existiria sem o contributo dos conhecimentos adquiridos durante toda a história da humanidade e certamente não seria correcto ignorarmos oito centúrias da nossa história hospitalar. Talvez por falta de documentação e de pesquisa sistemática, associada a uma interpretação “modernista” de Medicina, é tendência generalizada considerar a quase inexistência de cultura médica durante a Idade Média, denegrir o sistema hospitalar afirmando-o semelhante a hospedagem, afirmar que pouco se estudava medicina ou cirurgia no nosso país durante esse período. Veremos que essas afirmações não correspondem à verdade; o nosso povo caracteriza-se por um modo muito próprio de viver e de estabelecer regras, absorvendo a cultura de outros (incluído árabes e judeus), mas transformando-a e adaptando-a, tendencialmente não seguindo as regras alheias; parafraseando José Hermano Saraiva, Portugal “é um país onde grande parte da população teria de viver a parecer o que não era e a tentar esconder-se da morte clamando uma fé que não tinha”[3]. Não será ainda hoje assim?
Portugal foi no período medieval um país com uma maneira de viver muito própria, completamente diferente dos restantes países da Europa de então; mantendo as lutas territoriais semelhantes às do restante Velho Continente com os reinos nossos vizinhos, porque espartilhado, sem esperança de aumentar o seu território continental, dedicou-se a explorar o mar e encontrar terras distantes onde captar riquezas; tudo fizemos durante a Idade Média, até ao ano de 1500, desde a exploração da costa de África, a descoberta da Madeira e dos Açores, a passagem para o oceano Índico, a chegada por mar ao Oriente e o descobrimento do continente americano; nos anos seguintes limitámo-nos a desenvolver o que já estava feito. Não é pois credível que este povo não cuidasse da sua saúde do modo mais conveniente e adequado às exigências que se lhe impunham.
Este trabalho visa principalmente o estudo dos estabelecimentos de assistência conhecidos a partir da fundação da nacionalidade, correspondendo à Baixa Idade Média. Tem como enorme ausência o estudo do período muçulmano, para o qual não me foi possível compilar adequados conhecimentos. Trataremos apenas da informação que foi possível compulsar sobre os hospitais situados dentro do sistema muralhado da cidade de Lisboa ou situados perto desta, isto é, que na época se situavam a menos de um dia de viagem com ponto de partida na capital do reino. Em todo o estudo se considera apenas o conhecimento comprovado por fontes primárias ou secundárias, passíveis de por todos serem confirmadas; sabemos que o nosso conhecimento é ínfimo em relação com os factos ocorridos na época, em parte pela inexistência de documentação original, em parte devido a diversas e nem sempre correctas interpretações dos documentos consultados e escritos ao longo de séculos. Uma fonte que nos seria preciosa mas que nos está vedada, por aparentemente ter desaparecido, seria o tombo mandado executar por ordem de D. Manuel I, sobre as propriedades pertencentes às instituições hospitalares e de beneficência e respectivos rendimentos[4].
A tarefa de conhecer a história é árdua e infinita. Quando se inicia a pesquisa de um tema não se imagina a quantidade de bibliografia, crescendo exponencialmente à medida que saltitamos entre velhos livros e documentos e os sítios da internet, compilando frase por frase e referência por referência toda a informação que vai surgindo; reunir os dados encontrados num texto coerente será porventura ainda mais difícil. Esta pesquisa sobre os hospitais medievais de Lisboa não ficará certamente contida em si mesma e nunca estará terminada; outros lhe darão continuidade.


[1] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 25-26
[2] Paróquias da Baixa-Chiado, Memórias de Uma Cidade Destruída, Alètheia Editores, 2005, p. 169-170
[3] José Hermano Saraiva, História concisa de Portugal, Publicações Europa-América, 24ª ed., 2007, p. 81
[4] Rita Luis Sampaio da Nóvoa, A Casa de São Lázaro de Lisboa – Contributos para uma história das atitudes face à Doença (sécs. XIV – XV), dissertação de mestrado em história medieval, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 2010, p. 46-47

2 comentários:

  1. texto interessante mas não corresponde ao que pesquisei na Net

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    1. Em primeiro lugar gostaria que se identificasse, pois não gosto de comunicar com anónimos.
      Em segundo lugar, não sei de que assunto fala que pesquisou na Net, pois neste texto abordo vários assunto e, ao contrário de si, coloco a respectiva bibliografia.
      Cumprimentos
      Cristina Moisão

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